O descaso não tem cor (*)
Novato nas redondezas, aquele ser que se esconde embaixo do surrado pano lilás, sobrevive da bondade sazonal do veterano e de sua família, sempre sem medo de aparecer e exercer o poder de mando. O mendigo, o sem teto, o morador de rua, o menos afortunado, recém começa a delimitar seu espaço. E o descaso, que divide o nobre metro quadrado com a população da Independência e do Bom fim, mas age como se fosse o proprietário das mentes e corações, desfila suas vestes ricas e limpas, sem cores.
Até já são figuras conhecidas dos vizinhos. Do dono do bar que vende bebida aos menores de idade. Do público da garagem, que hermeticamente se abre e recolhe os filhos de muitos. Da farmacêutica que revende medicamentos sem receita apesar da tarja preta. Dos fregueses do armazém que penduram suas contas domésticas, mas não dispensam a soberba. Os vizinhos de rua do sujeito embaixo do trapo sujo e do esnobe do descaso insistem em fingir não conhecer esta realidade. Apostam na desocupação gradual e pacífica. Preferem continuar cegos. Alheios ao mundo lá fora.
O morador que se protege com aquele pano encharcado de tanta chuva já esteve em outras ruas. Artérias tão importantes como a Independência. De fluxo razoável. Movimento freqüente. Muda-se com facilidade. É um ser adaptável. Não faz muitas exigências. Não tem malas. Não precisa carregar suas lembranças porque nem as tem. Deixou a memória perdida numa rua num bairro distante. E, para não criar laços fraternais, suponho, não mostra o rosto. Nem uma única parte do corpo. Sabe-se apenas que respira debaixo do que seria um cobertor. Ninguém tentou ir além.
Exigente e prepotente, o descaso não aceita qualquer área urbana. Quer lucratividade. Rentabilidade. Não é adepto das mudanças. Exceto se lhe acenam com uma troca de posição social. É sobrecarregado de malas, mochilas e pastas. E chega com seus álbuns de recordações, fotos de família e recordações de uma vida sem atropelos. Faz questão de ser reconhecido. Não para criar intimidade, e sim para aparecer nas colunas sociais. Onde passa, deixa seu perfume de odor forte e francês.
A cena repete-se em vários pontos da cidade. E em muitas cidades. Não é um privilégio de Porto Alegre, embora tenha se acentuado mais nos últimos oito anos. É o retrato colorido de tons cansados e gastos daqueles que vivem nas ruas. É a fotografia sem cor dos sentimentos mais mesquinhos e egoístas daqueles que pensam emprestar suas ruas para os outros.
Marcadores: Colunas
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