Cada uma que me acontece (*)
Quando a gente imagina que nada mais nos espanta e tem a impressão de que nada mais irá nos surpreender na vida, um episódio especial e inusitado vem e nos arranca o chão. Antes de relatar o que me desnorteou, no início do mês, preciso informar-lhes que não sou preconceituosa, nem racista e respeito todas as diversidades, sejam econômicas, sexuais, raciais e de outros ais. Já que estou sendo totalmente sincera com vocês, devo admitir publicamente que sou muito radical e fanática na vida política. De resto, acho que sou perfeitamente normal, se é que isto é possível e até que provem o contrário.
Dentro da minha suposta normalidade, num dia como outro qualquer, ou melhor, absolutamente tranquilo para uma tarde de sábado, em Porto Alegre, numa rua exageradamente movimentada, na frente de um shopping da cidade, fui ultrajada, ofendida, xingada por um mendigo (perdão, não conheço outro termo que se encaixe aqui e seja politicamente correto). Nunca ouvi, juro por tudo que é mais sagrado, tanta maldição junta saindo da boca de uma única pessoa. Nem eu pensava que existia tanta palavra de desaforo na Língua Portuguesa. E menos ainda que um morador de rua conhecesse amplo vocabulário.
Tudo porque eu desci correndo do táxi que iria prosseguir o trajeto e deixar a minha mãe na sua casa, depois de um almoço patrocinado por ela, e fiz menção de entrar no shopping que anunciava uma mega liquidação. Interpelada pelo cidadão da rua, que não aparentava motivo visível para não trabalhar e ter que mendigar, exceto a crise econômica e blá, blá, blá, cometi o crime de não ter um trocado disponível para contribuir com o mendigo. E educadamente dizer a ele que não tinha dinheiro. Porque poderia, como fazem muitos, deixá-lo falando sozinho com a mão estendida.
Dizer que não tinha dinheiro para dar aos outros e direcionar os meus passos para o shopping foi o erro. O morador de rua passou a me destratar com palavras de baixo calão, ofender toda a minha geração de antepassados desta encarnação e das outras, jogar uma maldição para que eu nunca tenha dinheiro. E, contrariado com a minha declarada intenção de entrar no shopping, apesar da inconformidade dele, passou a gritar para todos ouvirem: “o que vai fazer então no shopping, se é pobre, se não tem dinheiro, se não pode me dar uma esmola”?
Dentro do shopping, mais calma e livre do assédio raivoso do cidadão, raspei no caixa eletrônico do banco o resto do crédito do cheque especial, quase estourando o limite, e comprei poucos itens alimentares para sobreviver no supermercado, controlada pelo saldo do cartão e pelo medo da possível figura do mendigo na saída do estabelecimento. Após os xingamentos do homem na rua, por dias carreguei a culpa de não ter algum dinheiro a ser raspado no banco para dividir, o ônus de ter rendimentos mensais fixos, a marca de empregada na carteira de trabalho.
Mas, como a lógica da fome e da necessidade não conhece os limites da privacidade de cada um e ignora o teor do meu orçamento doméstico, tento fazer com que a atitude do homem não interfira na minha capacidade de compreender os desequilíbrios econômicos. Com medo de ouvir desaforos por ter tão pouco, eu ainda deixo moedinhas nas cestas dos índios na Rua dos Andradas, para o mendigo gay que mora na esquina da minha casa e outros pelas calçadas de Porto Alegre.
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1 Comentários:
Que disparate amiga! Que saia justa não? É preciso informar o shopping que as pessoas estão sendo atacadas moral e financeiramente por esse cidadão. E a gente sente culpa por tantas pessoas passando fome? Esse talvez já tenha chegado ao estado máximo da miserabilidade, a loucura que lhe come as entranhas!
Beijus e por incrível que pareça, kkkkk, tu é normal!
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