Se lembra do futuro que a gente... (*)
O passado sempre produz vivências, recordações, memórias e saudades. Feliz de quem tem um passado e pode, de vez em quando, relembrá-lo sem que só as cicatrizes apareçam machucando. Pois, no último final de semana, vesti a roupa colorida do passado. Com pequenos ajustes para customizar o traje, ele até que serviu. Viajei de ônibus para o interior, mesmo que o trajeto não tenha mais do que 100 quilômetros. Observei os vizinhos estendendo suas preocupações no varal. Experimentei quitutes culinários de mamãe, ainda que a galinha tenha passado do ponto. Lagarteei no sol comendo laranja. Tive uma mesa de almoço de domingo com todos os assentos ocupados. E cotovelos se batendo.
Fotografias de um álbum amarelado de um tempo em que era possível se permitir pequenas inconfidências com os vizinhos e pecados da gula. Nenhum parentesco com as fofocas, os acenos rápidos nos elevadores, as refeições com gosto padronizado de fast food dos dias atuais. Cenas de famílias que tem afeição para semear, colher e trocar. Muito diferente dos sorrisos forçados dos encontros anuais em formaturas, aniversários das crianças. Retalhos de infâncias em que os brinquedos eram lúdicos, as crianças se sujavam na areia, os campeonatos eram de botão, de amarelinha, de ser feliz.
O retiro que gerou essa melancolia branca (não a que dói e consome - a melancolia preta - e nada aqui de racismo, apenas usei o termo da macumba) não durou dois dias. Foi um tempo roubado do final de semana urbano. O suficiente para me contaminar deste sentimento de paz. Uma visita ao novo lar de minha mãe, sua casinha na rua sem asfalto, com laranja e bergamota crescendo no quintal, caindo independentes das árvores, amor prefeito cultivado no jardim da entrada. Lá em Butiá, onde minha cunhada prepara, com cuidado, um novo ser para o futuro, meu sobrinho (a) em gestação.
Desde que retornei, escuto, repetidamente, a música “Maninha”, do meu amante Chico Buarque (pensaram que voltaria totalmente curada da demência?), e percebo que a ternura dos seus versos é a mesma que passeia faceira nas minhas recordações. Porque eu me lembro dos luares dos sertões, das estrelas salpicadas nas canções, da jaqueira, da fruta no capim, do jardim coberto de flor, e que pena, mas hoje só dá erva daninha no chão que ele pisou. Claro que, deletando a parte que o príncipe voltou a ser sapo e estragou o jardim, existem descrições mais perfeitas do tempo em que se acredita em tudo?
Para manter o clima familiar e de carinho, quando voltei, no domingo à noite, a minha filha Gabriela e meu genro (sim, eu já vivo esta situação) haviam preparado um dublê de café colonial para me esperar. Bolo de chocolate, pipoca, sanduiche e outros alimentos nem tão naturais. Mas vale a intenção. Dentro do possível ou que podia ser revelado, me contaram do filme, do almoço e dos cachorros. E olhando para a minha adolescente Gabriela, novamente, me peguei cantando a música do Chico, “se lembra do futuro que a gente combinou, eu era tão criança e ainda sou...”
(*) márcia fernanda peçanha martins
Marcadores: Colunas
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial