Não se trata, em hipótese alguma, da manhã de uma louca que não sabe usar seu tempo, dosar suas atividades ou que deseja ser chamada de Super Mulher. A Márcia, que assina esse texto, é mulher privilegiada. Eu conseguirei utilizar a sobra da manhã para olhar o resto dos jornais na Internet, escrever alguma coisa, olhar o material escolar e preparar o lanche da filha para o colégio e cozinhar um almoço que só não é melhor delimitado pelas minhas precárias condições culinárias. Certamente, não engrosso a lista das excluídas sociais, das analfabetas, das violentadas, das sem emprego, sem vontade, sem esperança, quase sem vida, mas que dão à luz novas vidas.
Apenas mais um rosto na multidão feminina do Brasil que ainda persegue a igualdade de direitos e o fim da discriminação entre homens e mulheres. Desde o dia 8 de março de 1857, em Nova Iorque, quando operárias morreram queimadas na luta pelos seus direitos, e a data ficou, posteriormente, instituída como o Dia Internacional da Mulher, o sexo frágil nunca mais fugiu da luta. Marias, Reginas, Leilas, Clarices e outras mais, lutaram pelo direito ao voto, pela creche no local de trabalho ou então pelo subsídio do empregador, pelos direitos trabalhistas da maternidade. Em blocos ou separadas, brigaram pelo direito de ter direito.
Muito para nós é tão pouco. Pouco, não queremos mais. E o motivo ? Se com pouco já avançamos, vamos aproveitar o início do século para mudar de vez as estatísticas. Agora, com muito. Hoje, 2/3 dos analfabetos do mundo são mulheres, que com as crianças, somam 80% dos refugiados. De 1,2 bilhão do contingente no planeta que vive abaixo da linha de pobreza, 70% são mulheres. No Brasil, uma mulher é vítima de violência, geralmente, doméstica, a cada 15 segundos. E se cala. Para sempre. Normalmente o agressor é o próprio companheiro, que após praticar a violência dorme em paz.
A Rute, que desce apressada o Morro da Cruz para deixar os moleques na casa da vizinha, pegar o ônibus lotado e atravessar a cidade para fazer faxina na casa de gente rica e juntar uns trocados para a semana, não está preocupada com as manchas roxas que denunciam no seu corpo a violência sofrida na noite anterior. Menos afortunada do que eu, Rute tem pressa e o despertador dela toca muito cedo. No inverno, ainda é escuro quando essa mulher tira os filhos do casebre. O companheiro, ultimamente, desempregado, passa o dia dormindo em casa. Rute, que ainda lava roupa para ganhar mais dinheiro. E sabem como é, fica com pena de mandar o agressor vazar.
De noite, às vezes, Rute ainda estremece e não sabe o que lhe dá por dentro que não devia, que é feito uma aguardente que não sacia, que é feito estar doente de uma folia, quando as mãos do companheiro começam com carícias nas suas coxas e percorrem caminhos do seu corpo que vão amolecendo. E a morena bonita de olhar amendoado não rejeita os carinhos do marido, namorado ou sei lá o quê. Enquanto se oferece na cama, despudorada, semi-nua, perfume de lavanda barato, porque naquele momento ela tem o direito de querer sexo, esquece o agressor e o mundo lá fora que lhe faz tão infeliz.
No intervalo da manhã cronometrada de Márcia e da noite sensual e quente de Rute, outras tantas mulheres, como fazem todos os dias do ano, ocuparam o turno da tarde com a segunda jornada de trabalho ou será terceira ? Márcia, depois do almoço e de lavar correndo a louça, despachar, literalmente a filha no colégio, caminha até a redação do jornal, onde pautas quentinhas lhe aguardam. Se sobrar tempo, no final do dia, antes de pegar a Gabriela, quer pintar os cabelos e, em casa, fazer uns minutos de esteira. Ops, tem que pensar na comida de amanhã e bilhete do professor da agenda da fila. É preciso conquistar bem mais direitos.
(*) márcia fernanda peçanha martins
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