Na rua que sustenta o meu lar, espécie de freeway urbana que une os acelerados habitantes da Avenida Independência aos contestadores carismáticos da Avenida Osvaldo Aranha, dois novos moradores instalaram seus pertences nos dias de chuva do outono em Porto Alegre. Alheios aos engarrafamentos do final de tarde, aos engavetamentos de sombrinhas e guarda-chuvas, aos barulhos dos bêbados do bar na esquina, eles permanecem. O mais recente agregado do local é misterioso: vive coberto com um trapo lilás. E sofre o desprezo do mais antigo, que se mostra desenvolto e à vontade.
Novato nas redondezas, aquele ser que se esconde embaixo do surrado pano lilás, sobrevive da bondade sazonal do veterano e de sua família, sempre sem medo de aparecer e exercer o poder de mando. O mendigo, o sem teto, o morador de rua, o menos afortunado, recém começa a delimitar seu espaço. E o descaso, que divide o nobre metro quadrado com a população da Independência e do Bom fim, mas age como se fosse o proprietário das mentes e corações, desfila suas vestes ricas e limpas, sem cores.
Até já são figuras conhecidas dos vizinhos. Do dono do bar que vende bebida aos menores de idade. Do público da garagem, que hermeticamente se abre e recolhe os filhos de muitos. Da farmacêutica que revende medicamentos sem receita apesar da tarja preta. Dos fregueses do armazém que penduram suas contas domésticas, mas não dispensam a soberba. Os vizinhos de rua do sujeito embaixo do trapo sujo e do esnobe do descaso insistem em fingir não conhecer esta realidade. Apostam na desocupação gradual e pacífica. Preferem continuar cegos. Alheios ao mundo lá fora.
O morador que se protege com aquele pano encharcado de tanta chuva já esteve em outras ruas. Artérias tão importantes como a Independência. De fluxo razoável. Movimento freqüente. Muda-se com facilidade. É um ser adaptável. Não faz muitas exigências. Não tem malas. Não precisa carregar suas lembranças porque nem as tem. Deixou a memória perdida numa rua num bairro distante. E, para não criar laços fraternais, suponho, não mostra o rosto. Nem uma única parte do corpo. Sabe-se apenas que respira debaixo do que seria um cobertor. Ninguém tentou ir além.
Exigente e prepotente, o descaso não aceita qualquer área urbana. Quer lucratividade. Rentabilidade. Não é adepto das mudanças. Exceto se lhe acenam com uma troca de posição social. É sobrecarregado de malas, mochilas e pastas. E chega com seus álbuns de recordações, fotos de família e recordações de uma vida sem atropelos. Faz questão de ser reconhecido. Não para criar intimidade, e sim para aparecer nas colunas sociais. Onde passa, deixa seu perfume de odor forte e francês.
A cena repete-se em vários pontos da cidade. E em muitas cidades. Não é um privilégio de Porto Alegre, embora tenha se acentuado mais nos últimos oito anos. É o retrato colorido de tons cansados e gastos daqueles que vivem nas ruas. É a fotografia sem cor dos sentimentos mais mesquinhos e egoístas daqueles que pensam emprestar suas ruas para os outros.
(*) márcia fernanda peçanha martins
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