Blog da Marcinha

Ao postar emoções, medos, sensações e utopias aqui, através de fotos, pensamentos, crônicas, artigos e poesias, entrego a vocês um pedaço enorme do meu coração, por vezes ferido, outras alerta ou contente. Use com moderação!

08 junho, 2010

As amenidades nossas de todos os dias (*)(**)

Para não dizer que não falo de flores, hoje decidi escrever sobre as pequenas encrencas de todos nós, às vezes complicadas e capazes de nos trazer as piores dores de cabeça, e outras tão banais e corriqueiras e mesmo assim roubam horas importantes de sossego. Não sei se porque ao acordar sempre deparo com o vazamento no banheiro que mancha a parede do corredor. Não sei se porque fico angustiada com a duração do tratamento dentário. Talvez em função do susto com o aumento da mensalidade do plano de saúde. Ou porque enfrento um momento de indecisão do futuro profissional de minha filha.
Se colocar todos os problemas pequenos ou grandes que me afligem no liquidificador, não faço ideia do resultado final, mas aconselho: é melhor sair da frente para evitar o estrago. Porque, com o amadurecimento da idade, arrisco dizer que aprendemos a lidar melhor com os pedregulhos da nossa rotina. E se nem o poeta Carlos Drummond de Andrade conseguiu esquecer o acontecimento das pedras no caminho, porque nós conseguiríamos? Podemos resolver, mas seguimos com a lembrança dos caminhos mais lapidados.
Talvez o que nos torne diferentes com o tempo passado é a maneira de encarar estes entulhos. Sem desmerecer o clichê da afirmação, desenvolvemos um jeito de aproveitar as partes recicláveis destes entulhos. Sim, porque elas existem. Não são apenas restos não aproveitáveis que compõem os problemas de todos nós. No meio de toda a bagunça, entre mortos e feridos, graças ao empenho de quem procura, surgirá uma quantidade a ser utilizada em alguma nova etapa. E o ideal seria separar nos armários da vida, gavetas para armazenar os ingredientes para uso futuro.
Às vezes, impossibilitados de separar e etiquetar nas gavetas corretas o positivo e o negativo de cada problema é frequente tropeçar nas encrencas e nem sempre resolver tudo no tempo ideal para não acumular mágoas e tornar amargas as futuras negociações.
As amenidades nossas de todos os dias, invariavelmente, são resolvidas com a ajuda de pessoas importantes. Como na próxima coluna, que escreverei no dia 9 de junho, comemoro mais um aniversário, surpreendendo encrencas que julguei bem difíceis de superar, agradeço estas pessoas sempre presentes na minha vida. Pai, mãe, irmãos, cunhada, sobrinhos. A insuperável Gabriela, filha, amiga e companheira. E aos amigos de tudo, Jorge, Soninha, Lessa, Carlinha, Silvana e vários da Saudosa Maloca, Marcela, Jurema e colegas do Correio do Povo, Lili e tantos outros que amo demais.
(*) coluna publicada originalmente no site www.coletiva.net no dia 2 de junho
(**) márcia fernanda peçanha martins

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Tudo aos 50 (*)


Sei um tudo de nada
e quase nada de tudo
Já errei a caminhada
e terminei o estudo.
Mas o que sei é nada
apesar do meu canudo.
Escolhi outra estrada
e ainda não sei de tudo.
Enfrento a madrugada
com um desafiar sisudo.
E depois, em disparada
visto-me com um escudo.
Na manhã despudorada
Desperto livre de tudo.
Levanto e vejo que nada
Mudou e que, sobretudo
Sobrou a menina acuada
que tem medo de tudo.
E escondida na fachada
é mais um ser desnudo.
Comemoro os 50 de nada
e choro lágrimas de tudo

(*) márcia fernanda peçanha martins

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Saia de saia (*)


Saia de saia

Hoje, coloque uma roupa
bem à vontade e saia.
Simplesmente, saia.
Por aí, sem medo.
Desfile como majestade
e convoque toda a laia.
Faça uma gandaia.
Mande até torpedo.
O que vale é se mostrar
com micro ou minissaia.
Vista-se de cobaia.
Escreva o enredo.
Não esconda suas formas
e silencie a vaia.
Fim da maracutaia
do corpo em segredo.
Ninguém tem dono aqui.
E nem lá na praia.
Saia desta tocaia.
Assuste o bruxaredo

(*) márcia fernanda peçanha martins

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03 junho, 2010

O descaso não tem cor (*)

Na rua que sustenta o meu lar, espécie de freeway urbana que une os acelerados habitantes da Avenida Independência aos contestadores carismáticos da Avenida Osvaldo Aranha, dois novos moradores instalaram seus pertences nos dias de chuva do outono em Porto Alegre. Alheios aos engarrafamentos do final de tarde, aos engavetamentos de sombrinhas e guarda-chuvas, aos barulhos dos bêbados do bar na esquina, eles permanecem. O mais recente agregado do local é misterioso: vive coberto com um trapo lilás. E sofre o desprezo do mais antigo, que se mostra desenvolto e à vontade.

Novato nas redondezas, aquele ser que se esconde embaixo do surrado pano lilás, sobrevive da bondade sazonal do veterano e de sua família, sempre sem medo de aparecer e exercer o poder de mando. O mendigo, o sem teto, o morador de rua, o menos afortunado, recém começa a delimitar seu espaço. E o descaso, que divide o nobre metro quadrado com a população da Independência e do Bom fim, mas age como se fosse o proprietário das mentes e corações, desfila suas vestes ricas e limpas, sem cores.

Até já são figuras conhecidas dos vizinhos. Do dono do bar que vende bebida aos menores de idade. Do público da garagem, que hermeticamente se abre e recolhe os filhos de muitos. Da farmacêutica que revende medicamentos sem receita apesar da tarja preta. Dos fregueses do armazém que penduram suas contas domésticas, mas não dispensam a soberba. Os vizinhos de rua do sujeito embaixo do trapo sujo e do esnobe do descaso insistem em fingir não conhecer esta realidade. Apostam na desocupação gradual e pacífica. Preferem continuar cegos. Alheios ao mundo lá fora.

O morador que se protege com aquele pano encharcado de tanta chuva já esteve em outras ruas. Artérias tão importantes como a Independência. De fluxo razoável. Movimento freqüente. Muda-se com facilidade. É um ser adaptável. Não faz muitas exigências. Não tem malas. Não precisa carregar suas lembranças porque nem as tem. Deixou a memória perdida numa rua num bairro distante. E, para não criar laços fraternais, suponho, não mostra o rosto. Nem uma única parte do corpo. Sabe-se apenas que respira debaixo do que seria um cobertor. Ninguém tentou ir além.

Exigente e prepotente, o descaso não aceita qualquer área urbana. Quer lucratividade. Rentabilidade. Não é adepto das mudanças. Exceto se lhe acenam com uma troca de posição social. É sobrecarregado de malas, mochilas e pastas. E chega com seus álbuns de recordações, fotos de família e recordações de uma vida sem atropelos. Faz questão de ser reconhecido. Não para criar intimidade, e sim para aparecer nas colunas sociais. Onde passa, deixa seu perfume de odor forte e francês.

A cena repete-se em vários pontos da cidade. E em muitas cidades. Não é um privilégio de Porto Alegre, embora tenha se acentuado mais nos últimos oito anos. É o retrato colorido de tons cansados e gastos daqueles que vivem nas ruas. É a fotografia sem cor dos sentimentos mais mesquinhos e egoístas daqueles que pensam emprestar suas ruas para os outros.
(*) márcia fernanda peçanha martins

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Soneto não correspondido (*)


Se não retribuístes ao meu afeto
nem desembrulhastes os presentes
e ignorastes o terço e o amuleto,
jamais terias atos correspondentes.

Enquanto a paixão em mim exala
no ar e no suor, acorda os sentidos,
parece que em ti é a voz que cala
no horizonte os desejos oprimidos.

E se ignoro estes sinais e te espero
é porque te entreguei meu coração
e não sei caminhar como eu quero.

Declaro-me prisioneira e indefesa
de uma não correspondida emoção
que me deixa sumir na correnteza

(*) márcia fernanda peçanha martins

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